A proposta, que pode aumentar a produtividade da economia e alavancar o crescimento, é debatida há décadas no país. Ela tem enfrentado dificuldades para sair do papel porque impacta interesses de diferentes setores econômicos e mexe na arrecadação da União e de Estados e municípios, demandando ampla negociação.
Além da simplificação do sistema, o governo defende também a criação de um mecanismo que devolveria aos mais pobres o imposto cobrado sobre seu consumo, medida que contribuiria para reduzir a elevada desigualdade de renda no país.
A ideia é que essa devolução substitua desonerações que hoje beneficiam toda a população, sem distinção entre ricos e pobres, como o caso da cesta básica.
A proposta implicaria que o novo imposto tenha uma alíquota um pouco maior para os segmentos de renda média e alta, mas o governo argumenta que o impacto geral da reforma continuaria beneficiando todos os grupos sociais devido aos ganhos de crescimento econômico (entenda melhor ao longo da reportagem).
“Significa que os mais ricos vão ser prejudicados? Não, eles serão menos beneficiados do que os mais pobres”, disse o secretário da Reforma Tributária do Ministério da Fazenda, Bernard Appy, em fevereiro, durante evento do banco BTG, ao defender a devolução de impostos.
Segundo a especialista em questões tributárias Melina Rocha, diretora de cursos na York University, no Canadá, hoje há um consenso de que esse modelo – que substitui a desoneração de produtos como cesta básica por desoneração de pessoas – é mais justo.
“Há um duplo benefício: não só o pobre deixa de pagar o imposto sobre produtos essenciais, porque esse imposto vai ser devolvido, mas também a família mais pobre vai ser beneficiada porque o governo está arrecadando mais riqueza de quem tem mais capacidade para pagar tributo e vai aplicar esse dinheiro para políticas públicas que geralmente se revertem para os mais pobres”, ressalta.
Rio Grande do Sul passou a devolver ICMS em 2021
Segundo estudiosos do assunto, adotar a devolução para os mais pobres não seria algo complexo, pois o país já conta com um sistema de cobrança de impostos bem informatizado e com um amplo cadastro nacional de famílias de menor renda, o Cadastro Único (CadÚnico), que serve de referência para programas sociais, como o Bolsa Família.
Uma iniciativa pioneira que devolve parte do ICMS às famílias mais pobres foi adotada pelo Rio Grande do Sul em 2021 e tem servido de inspiração para a proposta nacional.
O Ministério da Fazenda estuda também experiências internacionais, como a devolução de impostos adotada no Uruguai, na Colômbia e no Canadá.
No caso do Rio Grande do Sul, o Devolve ICMS já distribuiu R$ 278 milhões desde seu início e hoje atende cerca de 600 mil famílias gaúchas inscritas no CadÚnico ou que tenham um dependente na rede estadual de ensino médio.
Essas famílias, que devem ter renda total de até três salários mínimos ou renda média por pessoa inferior a meio salário mínimo, recebem trimestralmente por meio de um cartão o valor fixo de R$ 100, como devolução do imposto. Há também uma parcela variável paga àquelas que solicitam inclusão do CPF na nota fiscal, a depender do valor consumido. No último trimestre, essa parcela extra foi de cerca de R$ 28 em média por família.
“A grande virtude do programa (do Rio Grande do Sul) é mostrar que a devolução é factível. Vejo ainda muitos questionamentos dizendo que seria difícil devolver impostos, mas temos instrumentos e tecnologia suficiente para fazer isso no Brasil”, disse à reportagem Giovani Padilha, auditor Fiscal da Receita gaúcha e autor da tese de doutorado que gerou a criação do Devolve ICMS.
Como a devolução está prevista na reforma?
O principal objetivo da reforma tributária é simplificar o sistema. Há duas alternativas principais já em análise no Congresso, ambas propostas de emenda constitucional (PEC).
A PEC 45 prevê unificar cinco tributos (IPI, PIS, Cofins, ICMS e ISS) no Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que funcionaria como um Imposto sobre Valor Agregado (IVA), comum em países desenvolvidos. Esse modelo evita o acúmulo de tributos ao longo da cadeia produtiva.
Já a PEC 110 previa originalmente unificar nove impostos, mas sua última versão é mais modesta. Ela sugere um IVA duplo: o IBS substituiria apenas o ICMS (impostos estadual) e o ISS (impostos municipal). Já a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) unificaria Cofins e PIS (impostos federais).
As duas PECs já preveem a possibilidade de adotar a devolução de parte dos impostos aos mais pobres. A PEC 110 prevê que o retorno do tributo será criado por meio de uma lei complementar. Já a PEC 45 estabelece que o IBS terá um adicional em sua alíquota para custear esse programa.
Uma simulação feita por professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) para estimar o impacto da devolução de impostos aos mais pobres, por exemplo, estipulou que a alíquota básica do IBS seria de 24,19% num cenário sem devolução. Esse seria o patamar necessário para manter a mesma arrecadação dos cinco impostos que seriam unificados.
Já no cenário com devolução haveria uma alíquota um pouco maior, que foi fixada em 24,55% na simulação (saiba mais ao longo da reportagem).
Os autores da simulação — que não corresponde necessariamente ao que será aprovado no Congresso — são os economistas Edson Domingues e Débora Freire, que hoje está na equipe do Ministério da Fazenda como subsecretária de política fiscal.
O governo não enviará ao Parlamento uma nova proposta de reforma tributária. O objetivo é coordenar as negociações em cima dessas duas PECs já em tramitação para chegar a um desenho final que tenha apoio para ser aprovado.
A previsão atual do grupo de trabalho criado na Câmara para analisar o tema é que a reforma esteja pronta para ser votada em plenário em maio.
Qual seria o impacto no bolso dos brasileiros?
Especialistas dizem que apenas a unificação de impostos, sem a devolução aos mais pobres, já teria o impacto de beneficiar os grupos de menor renda.
De modo geral, a forma como a produção e o consumo são tributados hoje implica numa carga maior sobre as famílias mais pobres.
Isso porque atualmente o consumo de bens tem carga tributária maior que o de serviços. E os brasileiros de menor renda concentram seu consumo mais em itens básicos, enquanto aqueles com mais dinheiro conseguem consumir mais serviços, como jantar em um restaurante ou ir a um show pago.
A simplificação do sistema tributário com a unificação de impostos deve reduzir esse problema, porque, de modo geral, tende a reduzir a carga tributária sobre a produção de bens pela indústria e elevar a que incide sobre o setor de serviços.
Mas o impacto na redução da desigualdade será bem maior caso haja a devolução de impostos.
E o impacto para cada grupo de renda vai depender do que de fato for aprovado e implementado: por exemplo, qual será a alíquota do novo imposto, quanto vai ser devolvido, e quais famílias terão direito.
A simulação feita por professores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) — detalhada no relatório Como a devolução dos impostos pode ajudar a reduzir a desigualdade no Brasil — indica que o impacto geral dessas duas medidas (unificação de impostos mais a devolução para os mais pobres) pode elevar em mais de 20% a capacidade de consumo de famílias com renda mensal de até um salário mínimo (hoje em R$ 1.302).
Os autores consideraram que a devolução seria feita para as famílias do CadÚnico, no valor máximo de R$ 13,22 por pessoa, que corresponde ao arrecadado com itens da cesta básica segundo o padrão de consumo de famílias com renda familiar de até R$ 1.908, de acordo com a Pesquisa de Orçamento Familiar do IBGE de 2017/2018.
Nessa simulação, famílias com renda per capita mensal de até R$ 178 receberiam o valor teto (R$ 13,22 por pessoa). Já famílias com renda familiar per capita de até meio salário mínimo teriam benefício de 75% do valor teto (R$ 9,25 por pessoa). Enquanto as de renda per capita acima de meio salário mínimo receberiam 35% do valor teto (R$ 4,63 por pessoa).
No total, R$ 9,8 bilhões seriam devolvidos no ano para 72,3 milhões de pessoas.
Por outro lado, a simulação indica que as duas medidas juntas tenderiam a reduzir um pouco a capacidade de consumo de famílias com renda a partir de quinze salários mínimos (hoje em R$ 19.530).
Já as famílias com renda intermediária, teriam um ganho de capacidade de consumo mais modesto (menos de 5%), que seria menor quanto maior fosse a renda.
Essa simulação, no entanto, não leva em conta o ganho de produtividade esperado para a economia com a simplificação do sistema tributário.
Uma projeção do economista da FGV Bráulio Borges indica que uma reforma tributária nos moldes da PEC 45 poderia elevar o PIB potencial brasileiro em 20% em 15 anos.
Outras projeções menos otimistas indicam que o impacto no PIB no longo prazo, isto é, quando todos os ganhos da reforma forem absorvidos pela economia, seria de ao menos 12%, ressalta Debora Freire.
“O pequeno efeito de queda no consumo dos mais ricos, dado pelos impactos de realocação (da carga tributária) com a mudança de base tributária e alíquotas, seria mais que compensados pelo efeito expressivo no crescimento”, afirmou à reportagem.
“Principalmente porque a renda dos mais ricos sofre impacto importante do crescimento. Haja vista que a distribuição de renda é muito concentrada no Brasil, quem apropria a maior parte do crescimento são os mais ricos”, reforçou a economista.
Como o sistema tributário pune os mais pobres
Hoje, o sistema tributário brasileiro é bastante regressivo, ou seja, pesa proporcionalmente mais sobre aqueles que ganham menos. Isso acontece por diversos motivos. Um deles é que o Brasil tributa mais consumo do que renda e patrimônio.
Como os mais pobres têm baixíssima capacidade de poupança, seu dinheiro costuma ser usado integralmente em consumo. Já os mais ricos conseguem guardar parte do seu dinheiro e constituir patrimônio, pagando proporcionalmente menos de sua renda em imposto.
A reforma que unifica impostos não vai impactar essa questão, mas outras medidas em estudo no governo, como passar a taxar lucros e dividendos distribuídos pelas empresas a acionistas, aumentariam a carga tributária sobre os mais ricos.
Por outro lado, a promessa de campanha de Lula de isentar o imposto de renda de pessoas que ganham até R$ 5 mil é controversa, pois beneficiaria um segmento de renda relativamente alta no país. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento domiciliar per capta brasileiro é de apenas em R$ 1.625 (dado de 2022).
Outro fator que torna o sistema regressivo, já citado, é o modo como a produção e o consumo são tributados, com carga mais elevada sobre indústria e mais leve sobre serviços.
Um terceiro fator são desonerações (descontos de tributos) que favorecem em especial as pessoas mais ricas, como a restituição de imposto de renda sobre gastos particulares em saúde e educação.
Até mesmo desonerações que foram adotadas para favorecer os mais pobres, na prática, beneficiam os segmentos de maior renda. É o caso da cesta básica.
Segundo o relatório dos professores da UFMG, o corte de tributos sobre a cesta básica significou uma perda de R$ 18,6 bilhões em arrecadação para a União em 2016 e reduziu em apenas 0,1% o índice Gini (indicador que mede a desigualdade de renda).
Já políticas de transferência de renda, como o Bolsa Família, reduziram no mesmo ano 1,7% o Gini a um custo de R$ 28 bilhões.
“Ou seja, o Bolsa Família foi 12 vezes mais eficiente na redução de desigualdades que a desoneração da cesta básica”, diz o relatório.
Segundo os autores, isso ocorre por dois motivos: “as reduções (sobre itens da cesta básica) beneficiam os produtores, que repassam apenas parte da desoneração para os preços, aumentando a margem de lucro de pessoas que, na sua maioria, pertencem a classes mais ricas; e os estratos de alta renda da população também consomem produtos básicos”, sendo beneficiados pela desoneração pensada para favorecer os mais pobres.
via BBC Brasil