Diante da resistência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e da base governista em apoiar uma reforma administrativa, alguns parlamentares da oposição começam a pensar em alternativas para destravar o debate. Uma das ideias, apresentada pelo deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil-SP), busca focar em propostas para acabar com o que ele entende como “privilégios” de alguns setores do funcionalismo, especialmente no Poder Judiciário, no Ministério Público e no Legislativo, incluindo também os políticos.
Três emendas sobre o assunto foram apresentadas pelo deputado, na tramitação da Proposta de Emenda à Constituição da reforma administrativa (PEC 32/2020), que está travada no Congresso. O objetivo do parlamentar é reapresentar essas “emendas antiprivilégios” como uma nova PEC, que deve ser protocolada na Câmara nesta semana, segundo ele informou à Gazeta do Povo.
Kataguiri afirma que, caso as medidas sejam aprovadas, a estimativa é de uma economia de ao menos R$ 15 bilhões aos cofres públicos – o que seria viável apenas com o fim de pagamentos de benefícios que resultam em vencimentos acima do teto de funcionalismo.
Como o Congresso aprovou e o presidente Lula sancionou lei que reajusta em 6% anual entre 2023 e 2025 o salário dos servidores do Judiciário, a economia poderia ser ainda maior. “O aumento de salário aumenta os penduricalhos também e poderia gerar uma economia maior”, comenta Kataguiri.
O deputado avalia que é possível obter apoio não apenas da oposição a Lula, mas também da base governista, já que, conforme ele pontua, o discurso da esquerda para se opor à reforma administrativa é de que ela penaliza a base do funcionalismo.
O cálculo político de Kataguiri é que, ao propor o combate aos privilégios, é possível alcançar uma maioria para discutir algum tipo de reforma administrativa. Para isso, ele já iniciou contatos com outros parlamentares para discutir o assunto e entende ter apoio para a empreitada.
O deputado federal Mendonça Filho (União Brasil-PE) não tem conhecimento aprofundado sobre a redação das emendas propostas por Kataguiri, mas se diz favorável ao debate. “Do ponto de vista conceitual, acho que é necessário, sim, uma reforma administrativa”, analisa. “Evidentemente que qualquer proposição que vise combater privilégios, acabar com abusos e tornar mais democrático o acesso à função pública e a serviço da população, é melhor”, destaca.
Combate aos “privilégios” é bem visto, mas de difícil aprovação no Congresso
O deputado federal Zé Vitor (PL-MG) entende que a discussão tem apelo popular e pode “ganhar corpo” dentro da Câmara. “Eu acho que isso pode pegar, seria um primeiro passo de uma reforma [administrativa], porque nós não estamos falando em mexer na base do funcionalismo”, analisa.
O parlamentar cita a PEC 32/2020 e diz que o debate encampado por Kim Kataguiri precisa ser provocado para ganhar repercussão. Ele entende que a pauta teria o apoio da oposição a Lula, inclusive na bancada do PL e destaca que há um ponto de “distorção” e alguns excessos no serviço público que o Parlamento pode corrigir.
Zé Vitor destaca, porém, que a proposta não configura uma verdadeira reforma administrativa. “É um assunto novo e, de certa maneira, não é uma reforma, que é uma discussão muito maior, mas sim um ajuste administrativo. Mas, certamente, teria o nosso apoio e acho que ela tem mais chances de ter sucesso”, destaca.
O deputado federal Gilson Marques (Novo-SC) endossa que não seria possível chamar essa proposta de reforma administrativa e, embora seja favorável ao debate e a um profundo corte de despesas da máquina pública, ele avalia que há poucas chances de a discussão sobre o tema avançar em razão do corporativismo estatal.
“Isso teria consequência para todo o Judiciário. O alto funcionalismo do Judiciário é o STF [Supremo Tribunal Federal]. Como que faz uma PEC administrativa aos ministros do STF e STJ [Superior Tribunal de Justiça]? Acho que é um sonho bem alto”, comenta.
Outro fator que o leva a prever dificuldades para a matéria é a possível falta de apoio do governo. Para Marques, essa também não seria uma proposta a ser vista com “bons olhos” pelo governo”. “O governo no momento está exatamente aumentando cargos, salários, ministérios, não há sinalização de que pretende fazer alguma reforma administrativa para enxugar [gastos]”, diz.
O deputado do Novo entende que a reforma administrativa nunca foi uma pauta do governo petista e que ela não tem como vingar. Ele também lamenta não observar apoio da sociedade civil ao tema. “Os eleitores e os candidatos eleitos majoritariamente não têm interesse nisso”, lamenta.
Quais são as propostas das “emendas antiprivilégios”
As “emendas antiprivilégios” em discussão na Câmara dos Deputados visam acabar com uma série de vantagens de algumas carreiras do funcionalismo público. Uma delas veda férias superiores a 30 dias a qualquer servidor e empregado público, inclusive ocupantes de cargos típicos de Estado e com cargos eletivos – ou seja, atingiria também os políticos com mandato.
A ideia também é barrar uma série de dispositivos que não garantem isonomia com os trabalhadores do setor privado, como: adicionais referentes a tempo de serviço; aumento de remuneração ou de parcelas indenizatórias com efeitos retroativos; a redução de jornada sem a correspondente redução de remuneração; aposentadoria compulsória como modalidade de punição.
Outras duas emendas apresentadas por Kataguiri são voltadas aos membros do Judiciário e do Ministério Público. Uma delas permite que o Executivo Federal e o Congresso Nacional possam disciplinar sobre o novo Estatuto da Magistratura. A Constituição dispõe que apenas o Supremo Tribunal Federal (STF) é responsável por fazer isso, via projeto de lei complementar. Contudo, a justificativa do deputado lembra que isso nunca foi feito.
Outra emenda focada no Judiciário prevê que as férias não poderão exceder 30 dias por ano e nem ser acumuladas, “salvo por imperiosa necessidade do serviço devidamente justificada”. A proposta também sugere que ministros de tribunais superiores trabalhem em pelo menos um dos períodos dos recessos coletivos.
A emenda também veda e extingue qualquer percepção de verba remuneratória ou indenizatória de férias que ultrapasse os 30 dias anuais, ou de licença, de férias ou de afastamento em decorrência de tempo de serviço, envolvendo o recebimento de recursos sem trabalho, como licenças-prêmio, férias-prêmio ou licença-assiduidade, entre outros benefícios previstos em legislação federal, estadual ou municipal.
Por que a reforma administrativa não foi aprovada
A reforma administrativa, apresentada na PEC 32/2020, travou na Câmara ainda em 2021 em razão da proximidade das eleições e da resistência da própria base política do então presidente Jair Bolsonaro (PL) em aprovar a matéria. Uma parcela considerável era composta por membros da segurança pública que estavam dispostos a votar de forma contrária.
Para atenuar os impactos às carreiras da segurança, uma emenda foi apresentada de modo a excluir os futuros agentes da segurança da vedação de benefícios e privilégios. Outra emenda foi proposta para estabelecer uma série de benefícios e regras específicas para as carreiras da segurança, como garantia de promoção enquanto o policial estiver em cargo temporário.
Mas, mesmo com as emendas ao texto apresentadas, uma parte considerável da base de Bolsonaro ainda se mostrava contrária à aprovação. Não à toa a Gazeta do Povo informou que o governo foi avisado que um voto favorável custaria R$ 20 milhões em emendas do “orçamento secreto” a cada parlamentar.
A PEC 32 muda regras como estabilidade e o regime jurídico para servidores. Pelo texto, a estabilidade fica restrita a carreiras típicas de Estado, como diplomatas. A proposta foi aprovada por 28 votos a favor e 18 contrários em comissão especial, mas nunca chegou a ser votada em plenário. A depender da vontade do governo Lula, é improvável que avance.
Em aceno a servidores públicos, o governo se comprometeu a articular, junto ao Congresso, a retirada da proposta de reforma administrativa da pauta de discussões no Legislativo. O gesto foi feito em meio às negociações e à resistência dos servidores federais em acatar o reajuste salarial de 7,8%. Recentemente, em um jantar com empresários, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, também sinalizou que a matéria não será uma das prioridades da gestão Lula.
via Gazeta do Povo