Diante da repercussão da portaria do Ministério da Economia que criou o teto duplex do funcionalismo, com reajustes de até 69% para ministros próximos do presidente Jair Bolsonaro, o Palácio do Planalto tentou justificar a nova regra. Considerada imoral por especialistas em contas públicas, a medida é vista como contraditória, na contramão do discurso de austeridade fiscal do governo.
Por meio de nota divulgada ontem, a Secretaria de Comunicação da Presidência da República negou que o presidente tenha reajustado o próprio salário, e ainda alegou que estava respeitando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). Segundo o documento, o governo federal “está apenas adequando-se à decisão do Supremo, respaldada pelo Tribunal de Contas da União (TCU)” para mudar a forma de cálculo das remunerações de servidores aposentados e de militares da reserva que têm vencimentos somados acima do teto do funcionalismo, de R$ 39,2 mil, e estavam sujeitos ao abate-teto — que desconta o valor excedente. “A decisão do STF determina que servidores que acumulam cargos efetivos (com permissão constitucional, como professores e médicos) não podem ficar sem receber a remuneração integral, dentro do teto, por cada serviço prestado”, justificou a nota da Secom.
De acordo com a Portaria 4.975, publicada no Diário Oficial da União (DOU), o teto do funcionalismo será calculado separadamente para cada rendimento, no caso de servidores aposentados ou militares da reserva que trabalham para o Executivo — o que permitirá ganhos de até dois tetos, o equivalente a R$ 78,4 mil por mês. A medida é respaldada em uma decisão do TCU, de 2017, que permite aos servidores que acumulam dois cargos receber os dois salários integralmente. Contudo, técnicos do próprio governo que são contrários à medida lembram que há uma decisão do STF, de agosto de 2020, que decide que o teto remuneratório incide sobre a soma da pensão e remuneração ou aposentadoria. Essa confusão é resultado da falta de uma regulamentação para o vencimento do funcionalismo, prevista na Constituição de 1988.
O especialista em contas públicas e analista do Senado Leonardo Ribeiro também lamentou a falta de uma regulamentação do teto. “Na omissão do Congresso, o Executivo e o Judiciário ocupam o espaço”, definiu.
De acordo com Felipe Salto, especialista em contas públicas e diretor executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado, a existência dessa portaria mostra um direcionamento do governo para medidas que passam longe da responsabilidade fiscal. “Apesar de a decisão estar ancorada em entendimento do STF sobre essa possibilidade de o teto remuneratório ser aplicado separadamente — e não para o conjunto de aposentadoria e cargo em comissão —, ela cristaliza uma prática contrária ao espírito da responsabilidade fiscal e à necessidade de contenção de despesas”, afirmou.
“Parece haver dois pesos e duas medidas na gestão dos recursos públicos, se lembrarmos que o Orçamento acaba de ser sancionado com cortes importantes nas despesas de custeio de políticas públicas essenciais”, acrescentou.
PLs tentam pôr freio na benesse
Tramitam no Congresso cinco projetos de lei para barrar os efeitos da portaria do governo, que cria o chamado teto duplex, e que estão sendo articuladas tanto nos ministérios quanto no Legislativo pelos servidores ativos da União. Além disso, já começa a aumentar a pressão, dentro do Parlamento, para a judicialização da questão, uma vez que partidos de todos os espectros ideológicos consideram que acumular dois salários integralmente, num período de pandemia com crise econômica e desemprego crescente, é uma afronta à sociedade.
Um desses projetos foi apresentado pelo deputado federal Túlio Gadêlha (PDT-PE), na última quinta-feira, quando veio à tona a publicação da Portaria 4.975, do Ministério da Economia. O dispositivo eleva salários de alguns dos ministros mais próximos do presidente Jair Bolsonaro em até 69%, a partir já do próximo mês.
“Não podemos aceitar que o Executivo federal ignore o cenário atual de contenção de gastos públicos e de pandemia, e reajuste seu próprio salário e o dos seus ministros acima do teto constitucional de R$ 39,2 mil por mês”, explicou Gadêlha.
Segundo fontes do Congresso, a questão vai voltar para o Supremo Tribunal Federal a fim de que se pacifique a questão. A tese é de que, embora o Tribunal de Contas da União (TCU) tenha autorizado, com base na determinação do STF, não há uma decisão final.
“A portaria é uma estratégia fácil de ser derrubada porque não há unanimidade, e a permissão do STF era apenas para médicos e professores. O problema é que, depois de pago, o dinheiro, mesmo que seja suspenso, não retorna aos cofres públicos”, disse um servidor, que atua para a derrubada do texto duplex.
O impacto para os cofres públicos apontado pelo Ministério da Economia, de R$ 66 milhões, também é visto como uma tentativa de minimizar a má repercussão da medida, por estar abaixo de algumas estimativas iniciais. Conforme dados do Centro de Liderança Pública (CLP), o prejuízo para o contribuinte será maior: de até R$ 180 milhões neste ano. “Além de incoerente e mais oneroso para o erário, isso obsta o arejamento nos cargos comissionados. Servidores já aposentados não necessariamente agregam maior produtividade e acabam por manter uma lógica pouco inovadora na gestão pública”, comentou uma fonte do Judiciário, que é contra a interpretação do STF. (VB e RH)